Ned de Glamorgan, um homem de que lugar?

Retrato de Iolo Morganwg retirado da capa do livro "Y Digymar Iolo Morganwg" de Jenkins



Pa gur yn y beirdd? 


Existe um conto do ciclo Arthuriano que denomina-se Pa gur yn y porthaur? (traduzido como “Que homem é o porteiro?”) onde ocorre um diálogo entre o rei Arthur e o porteiro Glewlwyd Gafaelfawr. Muitas proezas Arthur conta ao porteiro, recordando tempos de glórias e batalhas, nos lembrando em sua essência arquetípica que as nossas raízes e histórias são os aspectos que nos definem no mundo, informando quem somos para que o porteiro do destino abra passagem para novas experiências e vidas. Usando como analogia esse poema, pergunto a você: Pa gur yn y beirdd? (“Que homem é o bardo?”). Quem era Iolo Morganwg? Como foi sua infância e juventude? Que tipo de aspirações tinha? À que lugar ele pertencia? Qual foi seu legado? Por que esse homem merece ser lembrado? 

De forma simplista, sabemos que Iolo Morganwg é pseudônimo de Edward Williams (1747-1826), de Glamorgan, sul das terras montanhosas do País de Gales. Em sua vida colaborou para o fortalecimento cultural e linguístico galês e do renascimento druídico. Ponto! É isso que nos falam a maioria dos livros e fontes. Não muito mais que isso. E, como bem apontado por Prys Morgan e John Haywood, os historiadores o ignoraram. Philip Carr-gomm utiliza o estudo de Stuart Pigot para fazer essa mesma análise, onde o mundo acadêmico reservou ao bardo galês uma posição fraudulenta. O conhecimento frio e acadêmico excluiu o poeta e sua poesia por considerá-lo um falsário. Lastimosamente é incrível o quão isso é verdade, pois ao pesquisar sua vida tive de me perguntar se Iolo Morganwg existia ou se também ele era uma invenção. 

É uma pena saber que a poesia não tinha (e ainda não tem) lugar no mundo da luz e da razão, já que a miríade industrial, burguesa, liberal e acadêmica relegou a emoção, abandonando-a no abismo das trevas. Talvez ai esteja a explicação do por que a noite ser em si o ambiente adequado para os poetas, pois todo conhecimento poético provém do sentimento transcrito. Além disso, o dia é o momento sagrado do capital, da produção, do trabalho, do tempo que é dinheiro, não devendo ser desperdiçado por meras bobagens em versos e delírios das musas. É de noite e somente nesse tempo que o poeta poderá estar sob efeito da lua, do ópio e do sonho. Por si só a poesia tem o poder de ser subversiva, transgressora, curiosa, criativa. 

Na noite de 10 de Março de 1747, no vilarejo de Pennon, paróquia de Llancarfan, na região sul do País de Gales, a senhora Ann Mathews sofria as dores do parto enquanto esperava a chegada de sua tia, Wenllian Seys. Ann também estava aflita ao ver seu esposo, o pedreiro Edward Williams, inquieto andando de um canto da casa ao outro. Mais um filho para alimentar, vestir e educar em meio a um tempo de pobreza e miséria. Quando a tia de Ann chegou, um ar de alívio tomou toda a casa rústica. Ela preparou com todo cuidado os utensílios e o ambiente para a chegada do bebê. A noite fria que anunciava a proximidade da primavera foi longa e laboriosa sob o lume do fogo que ardia na lareira. Quando os primeiros três raios de sol apareceram no horizonte, mudando o semblante do céu, ouviu-se um choro de criança. Nascera Edward Williams, que recebeu o mesmo nome do pai.


Habitação Galesa - Casa de Iolo Morganwg. Desenho de E. Grandsire


Conforme foi crescendo, embora muito mirrado e fraco, Edward Williams foi descobrindo o mundo ao seu redor cheio de paisagens interessantes com campos extensos, verdes colinas, vales, rios, bosques, ruínas de velhos castelos e fantasmas de outrora. Quando tinha sete anos de idade, em 1754, mudou-se com sua família para outro vilarejo chamado Flemington. Com nove anos o menino Williams não pode ir para a escola e, como toda criança de sua época em família pouco abastada, passou a trabalhar com seu pai o ajudando e aprendendo na profissão de pedreiro. Para suprir a falta da escola, sua mãe o ensinou, incluindo das leituras bíblicas até muitas outras tradições provindas da sua herança céltica.

Ao chegar do árduo e sistemático trabalho de no mínimo 6 até 12 horas diárias, Edward Williams sentava-se perto da lareira junto aos irmãos e sua mãe. Ann Mathews era descendente de uma família de nobres falidos originários das regiões de Llandaf, Radyr e Castell y Mynach, sendo que recebera em sua infância muitos conhecimentos tradicionais galeses e era versada em medicina, língua, poesia, canto e literatura. Há relatos que ela era conhecida pelos seus saberes médicos entre os moradores do vilarejo. Pelas noites, para suprir a falta da escola, Ann Mathews lecionava aos filhos e Edward Williams era o seu mais atento e interessado pupilo. 

Por influência e inspiração de sua mãe, Edward Williams na adolescência também entrou em contato com diversos mestres bardos remanescentes como Lewis Hopkins, Rhys Morgan e Siôn Bradford – este ultimo sendo seu instrutor mais importante. Embora os ensinamentos desses bardos fossem sua paixão, isso não pagava suas contas e de sua família. Sempre estava viajando com seu pai e irmãos em busca de emprego nos arredores, oferecendo a arte da pedraria, da alvenaria, da marcenaria e da carpintaria. 

Provavelmente Edward Williams escutou em uma de suas aulas que os bardos eram os “carpinteiros da poesia” e isso deve o ter feito ver que mesmo na dura realidade em que vivia, um bardo estava sendo gestado. A partir de seus estudos aprendeu sobre métrica, formalidades linguísticas e ortografia, despertando um amor pela vida poética. Suas viagens à trabalho com seu pai possibilitaram nas horas vagas que ele entrasse em contato com manuscritos e textos que passou a colecionar como um tesouro pessoal. Ao observar que os bardos adotavam pseudônimos, também conhecidos como nomes bárdicos, Edward Williams adotou o seu: Iolo Morganwg (Ned de Glamorgan). Parece que desejou honrar seus antepassados e sua terra natal, arquétipo ligado ao seu veio materno. 

Em 1770, Ann Mathews falece e causa muita comoção ao jovem Edward Williams, que em suas palavras via sua mãe como uma biblioteca viva. O lugar de prestígio que dava a sua mãe era tão forte que fica claro em sua história quão boa parte de sua aspiração ao bardismo originou-se desse aspecto feminino como uma deusa inspiradora (sua mãe a própria Ceridwen, e ele o Taliesin). Podemos até mesmo especular que Ann Mathews deva ser lembrada como o impulso que deu a Edward Williams de correr atrás de seu sonho: ser um bardo. E não qualquer bardo, mas estar entre os grandes nomes de Gales. 

No ano de 1773, agora um jovem de 26 anos, Edward Williams se muda para Londres em busca de emprego, onde fervilhavam pubs e tavernas com sociedades de expatriados galeses que se reuniam para valorizar sua cultura e língua através de declamação e disputa de rimas (uma espécie de Slam da época). Ali ele encontra por meio de Owen Jones a promissora Sociedade Gwyneddigion, fundada em 1751, se tornando um de seus membros assíduos. Foi no ambiente de revoluções, greves e fábricas que Edward Williams foi arrebatado pelos versos de um poeta do século XIV, Daffyd ap Gwilym. Foi ali também que provavelmente conheceu os estudos de Stukeley e a Antiga Ordem dos Druidas e deva ter se tornado um maçom, sendo iniciado em alguma loja. Também deve ter sido na capital inglesa que entrou em contato com as teorias abolicionistas de William Wilberforce, se tornando um verdadeiro militante da causa. Embora estivesse experimentando num momento criativo da vida, Londres não era agradável para os negócios e mesmo tentando mudar os ares em Kent, não houve oportunidades melhores de trabalho, percebendo que devia voltar para sua terra natal.


Retrato de Margaret, esposa de Edward Williams


Retrato de Edward Williams



Edward Williams retornou a Glamorgan em 1777, apaixonou-se e casou-se com Margaret, decidido a fincar suas raízes em sua pátria e estabelecer algum negócio que fosse lhe dar uma vida simples, mas confortável. Tentou montar vários negócios e se dedicar a várias profissões, mas acabou empobrecido. Quando sua esposa herdou parte das propriedades de seu sogro, tentou junto dela administrar a pequena fazenda, sem também obter muito sucesso. Afundou-se em dívidas e até foi preso em Cardiff. Seus irmãos, que lucravam com o trabalho nos latifúndios da Jamaica, ofereceram-lhe ajuda e acredite se quiser: Edward Williams recusou o auxílio, pelo fato de não aceitar um dinheiro que vinha do sofrimento advindo do trabalho escravo. Um verdadeiro idealista! O vício de usar láudano (tintura de ópio), muito comum aos intelectuais de sua época, deve ter aumentado consideravelmente. Dava-lhe uma sensação de calma ou até de fuga a toda essa realidade, e bem capaz que essa substância o fez pensar em outras possibilidades para sustentar sua esposa e seus quatro filhos. Ou seja, escrever... 

Em suas reflexões, provavelmente Edward Williams compreendeu que ele era muito bom em ser um bardo de corte, profissão que não existia mais. Além disso, haviam vários poetas nas beiras das esquinas e pedreiros em números exorbitantes para concorrer, estes totalmente desvalidos e sem um xelim no bolso. Como tornar algo inútil e agradável em dinheiro? Essa questão é muito contemporânea até para nós. Provavelmente a resposta à sua época foi: “por que não escrever poemas com todo conhecimento que tenho e dizer que encontrei esses mesmos versos em uma gaveta, afirmando que pertenciam a Daffyd ap Gwilym?”. Obviamente venderia como água! E não havia problema nisso, afinal autores como James MacPherson e Thomas Chatterton já haviam aberto caminho para isso. Criar e compilar um texto afirmando ser de autores e poetas anteriores era muito comum e rentável. E mesmo desconfiando, que acadêmico à época iria sair de sua cátedra e se intrometer em assuntos que não entendia? A ideia de ser um escritor e poeta invocando o nome de um bardo secular era realmente muito interessante. 

Pela primeira vez em 1780, Edward Williams mencionou em cartas aos seus amigos como Owen Jones e William Pughe que havia encontrado antigos poemas de Dafydd que jamais alguém havia lido. Ele se empenhou nesse trabalho por um longo período trocando cartas e informações com vários estudiosos, escrevendo versos e poemas até para revistas de arqueologia. Em 1785 seu pai morre, marcando literalmente uma divisão em sua vida – aqui sua faceta de pedreiro transita para a do bardo. Depois de juntar algum dinheiro e pedir apoio financeiro, em 1789 é publicado o Bardoniaeth Dafydd ab Gwilym (Poesia de Dafydd ap Gwilym) que tinha vários poemas escritos por Edward Williams, mas assinados como se fossem de Dafydd. Depois do sucesso, já que esses poemas arrebataram os leitores, quis um publico mais convencional e lançou Poems Lyric and Pastoral (1794), retornando a Londres. Daqui em diante seu objetivo se torna descortinar a história, os ensinamentos e as tradições dos bardos galeses. Edward Williams, que já tinha sido tantas coisas ao mesmo tempo e encontrado seu potencial, deixa Iolo Morganwg agir.




Gorsedd, Eisteddfod e Barddas 



Há certo gosto em ressuscitar a instituição bárdica no País de Gales daquele momento. Existia uma maluca corrida por curiosidades, fazendeiros se tornavam arqueólogos com facilidade e se nós pudéssemos visitar suas casas, com certeza haveria um quartinho ou gabinete onde se guardavam objetos, manuscritos, partituras, poesias, artefatos, coreografias e muito mais – besouros, aranhas e borboletas. E é nesse lugar que Iolo Morganwg encontra a hora de se auto-proclamar um dos últimos, se não único, remanescente da tradição bárdica galesa. E, queira ou não aceitarmos isso, ele assumiu essa forma com muito orgulho e proeminência. Em 1792, no Equinócio de Outono (Alban Elfed), no topo de uma colina em Primrose Hill, Iolo Morganwg reuniu várias londrinos e realizou o ritual solene de sua Gorsedd, usando fitas coloridas para iniciar os membros. Essa nova instituição que no substantivo galês traduze-se por “Trono”, "Outeiro" ou "Cátedra", relembrava um tempo de glória onde os bardos se sentavam ao lado dos reis e cantavam as genealogias em estrofes. É provável que ele mantinha reuniões de poetas e outros estudiosos e tenha fundado mais de três Gorseddau em Londres, mas o marco de realizar um rito druídico em público pareceu ser uma mudança tão forte quanto a paisagem de folhas secas. O espírito neo-druídico havia brotando.


Placa comemorativa em Primrose Hill em homenagem a Iolo Morganwg



Em 1795 a literatura já não era o sonho de Iolo Morganwg, pois sua figura havia sido transformada por ele mesmo no ultimo remanescente dos bardos galeses e assim, tornou-se uma verdadeira autoridade sobre o bardismo e assumiu a missão de reavivar a instituição da Gorsedd, da Eisteddfod (Assembleia) e da tradição bárdica. No mesmo ano, em Cowbridge, fundou a primeira Gorsedd em sua terra natal em plena primavera (Alban Eilir). É importante lembrar que a Eisteddfod tinha sido restaurada por volta de 1700 em Gales, com os esforços de John Roderick, onde os poetas divididos em equipes por condado disputavam seus “versos de pé quebrado”. Em 1789, Thomas Jones organizou também uma grande Eisteddfod em Corwen. Mas tudo nos leva a crer que os esforços de Iolo Morganwg de apresentar uma gama de estruturas simbólicas e rituais fortaleceram o movimento por toda Gales, transformando-o em algo durável e significativo para as futuras gerações. Essa sistematização da Gorsedd e da Eisteddfod foi depois adotada também na Bretanha Francesa (1899) e na Cornualha (1928). 

Ele encontrou muitos discípulos e apoiadores e passou a ensinar todos os que se interessassem no vulto dos antigos bardos. Ao retornar à Glamorgan, passou a viajar com seu filho e discípulo Taliesin Williams por cada rincão de Gales espalhando suas ideias, simbolismos e liturgias, com um fundo unitarista, identitário, romântico, pacifista e naturalista. Embora tenha encontrado alguns críticos a sua prática, nenhum deles conseguia desmantelar a proporção da influência que Iolo Morganwg tomou. Pequenos vilarejos passaram a fundar suas próprias organizações bárdicas e planejar assembleias, convidando o bardo de Glamorgan para tais eventos. Ele disse para os quatro ventos que a tradição dos bardos era herdeira dos druidas clássicos, trazendo a tona uma verdadeira obsessão por mitos, religião e filosofia céltica que se tornaria uma instituição nacional. 

As ideias de Iolo Morganwg influenciaram a construção de templos em formato de círculos de pedra em vários jardins e abalou até a ideia de sepultamento. William Price, médico e seu seguidor ferrenho, não quis enterrar seu filho e decidiu criar um ritual de cremação. Esse caso foi levado aos tribunais da época e o médico ganhou a causa, trazendo a tona a ideia moderna da cremação dos mortos como algo saudável. A figura do druida passou a fazer parte de capas de livros, vinhetas, carimbos, insígnias e brasões. A harpa, o alho-poró, os três raios, os trajes brancos, dolmens, dragões e um alfabeto bárdico foram cada vez mais associados a tradição e a símbolos nacionais galeses. Há relatos de casas das sociedades de operários que tinham como símbolo um druida e que toda essa energia confluiu com o teor político e reinvidicatório do período. Ou seja, até as greves aspiravam a um tipo de procissão druídica. 

Em 1797, na Colina de Garth, Iolo Morganwg desafiou os políticos e proprietários de terras da região reunindo uma Gorsedd local. Ele discursou para seus compatriotas conclamando-os para que valorizassem a cultura e língua galesa, os dizendo que faria com que o povo inglês visse a força do povo galês, que conhecessem sua história e que se convertessem a era de uma religião moral, que desfizesse fronteiras e rixas entre credos e povos. Esse “quase messianismo” levou a certa ira das autoridades locais, que proibiram as Gorseddau e Eisteddfodau da região, que resistiram clandestinamente. 




Grant, God/Goddess, thy protection, 
And in protection, strength, 
And in strength, understanding, 
And in understanding, knowledge, 
And in knowledge the knowledge of justice, 
And in the knowledge of justice, the love of it, 
And in that love, the love of all existences, 
And in the love of all existences, the love of God/Goddess and all goodness. 

("Oração da Gorsedd" de Iolo Morganwg) 



Após 1815 o clima se tornou muito favorável as inovações de Iolo Morganwg, pois a imaginação e criatividade do romantismo haviam ganhado força. Também ele já havia escrito para revistas e até influenciado Lady Charlotte Guest na compilação dos contos do Mabinogion. Não foi difícil convencer todo seu público a aderir às suas novidades cosmológicas e rituais baseadas nos ciclos solares, mesmo os mais tradicionais religiosos. Em 1819 a Gorsedd dos Bardos da Grã-Bretanha foi convidada para introduzir seus conceitos e cerimoniais na Eisteddfod em Carmathen. A partir daí a promoção e divulgação da Eisteddfod em toda Gales cada vez mais ficou associada a Iolo Morganwg e parece que houve uma guinada como manifestação cultural, gerando um incrível interesse pelos festivais e tradições. Em 1821, dois anos depois, o movimento bárdico havia ganhado tanto prestígio que parecia estar voltando aos tempos de glória, já que a Eisteddfod em Caernavon estava sendo patrocinada por nobres e burgueses locais.

Os últimos trinta anos da vida de Iolo Morganwg foram dedicados a criar um arcabouço teórico e metodológico para o bardo moderno/contemporâneo. Ele estava sinceramente preocupado com a sobrevivência dessa classe, função e tradição artístico-cultural em seu país, laboriosamente estando à frente da escrita de manuais e tudo que fosse possível ao seu alcance, usando sua criatividade e conceitos maçons, para defender o complexo e extasiante conhecimento bárdico. É nesse tempo que ele constrói sua carreira e desenvolve suas potencialidades, quem sabe se espelhando e trazendo de volta uma alma antiga, criando uma nova roupagem a sua ancestralidade.

O Arauto da Ordem e Gorsedd dos Bardos no Circulo de Pedras, T. H. Thomas, 1901

Sem cessar, Iolo Morganwg escreveu vários manuscritos onde expressava sua sensibilidade e paixão pelo bardismo. Após sua morte com 79 anos em Trefflemin, em 18 de Dezembro 1826, seu filho Taliesin ab Iolo publicou seus textos Cyfrinach Beirdd Ynys Prydein (O Segredo dos Bardos da Ilha da Britânia), The Iolo Manuscripts (Os Manuscritos de Iolo) e famoso Coelbren y Beirdd (Coelbren dos Bardos), um alfabeto do qual alegava ser originalmente bárdico. Outro discípulo, o clérigo John Williams ab Ithel publicou outras obras, dentre as mais importantes está a Barddas (Bardismo) de 1862, um verdadeiro curso para um bardo contemporâneo que alegou ser de autoria de Llewellyn Sion, um bardo do século XVI. A obra Tridedd Ynys Prydein (As Tríades da Ilha da Britânia) de 1807, publicada em vida, é uma grandiosa compilação do conhecimento de tríades, algumas de origem medieval e outras da mente de Iolo. Também é importante citar a publicação de 1844 de Ancient National Airs, que são estudos de melodias, canções e músicas tradicionais de Gales – do qual os acadêmicos chegaram à conclusão que nenhuma seja criação de Iolo Morganwg, mas um trabalho extenso da cultura musical galesa. Mais tarde, todo esse trabalho, deu origem ao National Eisteddfod  em Gales e denotou o despertar histórico e cultural galês, sendo Iolo Morganwg considerado um dos fundadores da moderna nação galesa.


Um Bardo me chama novamente... 


A visão negativa de charlatão leva a crer que o movimento druídico com base romântica deva ser descartado, enquanto que como herói Iolo Morganwg fica desconfigurado de seu tempo e espaço. Ambas as ideias levam a crer que o autor de Barddas é uma invenção (se torna um objeto, um bibelô ultrapassado ou um ídolo) e não o que ele é de verdade: um ser humano vivendo os conflitos do seu tempo e um exímio guardião e renovador da tradição cultural galesa. 

A conclusão que cheguei é que Iolo Morganwg é um revolucionário nato. Em sua trajetória ele faz um claro protesto ao colonialismo e ao imperialismo inglês, assim como também dedica-se a militância do Abolicionismo, a luta pelas identidades e povos excluídos, pela igualdade social e por uma moral que construísse um mundo mais aprazível para todos. É um poeta com idealismos fervorosos e radicais que coloca o mundo da natureza acima de um plano cada vez mais urbano, industrial e capitalista. Há uma essência feminina em seus estudos, símbolos e conceitos que valorizavam o seu elo materno, nos comunicando que a transformação do mundo virá pelo aspecto da mulher curandeira e sábia. Mesmo o seu uso de láudano nos dá pistas de sua tentativa de transgressão de um mundo endurecido, doloroso e insensível. 

Desde o início de sua vida, embora sempre cobrado e pressionado, não se arvora a estar em apenas uma carreira ou caminho, sempre aberto a busca das possibilidades do conhecimento. E vive a vida com plenitude, sendo um estudioso de grande expressão, um construtor de estruturas físicas e simbólicas, dando uma nova perspectiva de um arquétipo dado como sepultado. Através das leituras que fizemos é possível dizer que ele pode ser traduzido como o espírito de um tempo e lugar, canalizando uma cosmologia dada como perdida. Um ser histórico que vive suas próprias contradições e deixa-se redefinir em meio às adversidades. Ser romântico parece ser um bom caminho para tal. 

E tudo isso que citei acima não parece tão contemporâneo? 

O século XXI infelizmente está mergulhado em terrores, medos, fascismos, intolerâncias, preconceitos, ortodoxias, fanatismos, manipulações deletérias, problemas ambientais. Em outras palavras, o que ainda vivemos é a imposição da escrita sobre a oralidade, do homem sobre a mulher, do neo-liberalismo sobre os pobres, do opressor sobre o oprimido. Mas também é a virada do milênio e existe sim um clamor da Terra para a paz, o fim das injustiças, a queda de regimes autoritários, uma consciência cósmica, um basta à violência, um reencontro com a natureza, uma conexão maior da humanidade e uma vida mais sensível a arte. Vê-se que a oração druídica de Iolo Morganwg pede proteção, força, conhecimento, sabedoria, justiça, amor e paz, valores dos quais necessitamos para um mundo mais humano.

Desenho de Iolo Morganwg de S. Baring-Gould, 1900.

É nessa virada que está a função do bardo contemporâneo. Pois está enganado quem crê que a função do Bardo se restringe a somente obedecer normas e manter a tradição intacta. É função do bardo renovar, dar a sua voz, criar através de sua interpretação, se for preciso, burlar, e fazendo isso rindo e satirizando os que acham que detém todo o conhecimento. O Bardo quase morreu porque houve a imposição da escrita em relação a cultura oral. Na oralidade se inventa, se adapta, cresce-se como uma árvore (símbolo maior do Druidismo). A escrita era usada somente para magia, já que esta é uma forma de condensar a força da palavra num ato. Mas jamais a tradição oral fica estática e as que assim foram, seguiram o triste fim da morte, sendo que infelizmente não temos mais suas bibliotecas como fonte do saber humano. 

Acredito que Iolo Morganwg merece pelo menos nosso “muito obrigado”. Parece ser alguém que transitou de homem comum para um ser exponencial. E pode nos dar uma ideia do que é ser um bardo/ovate/druida no mundo atual, que também está envolto de diversas contradições. Acredito que precisamos urgentemente encontrar as causas nobres do nosso tempo e lutar pela busca da paz em todos os níveis da existência. 

Quando Iolo Morganwg olhou-se no espelho deparou-se com Daffyd ap Gwilym e outros bardos. Parece-me que eu (e espero que você também), estou repetindo o movimento, agora olhando para todos os bardos que vieram antes de mim e claramente para Iolo Morganwg. O que há dentro de nós que representa o velho bardo galês? Interessante é dizer a você que TUDO! E faz muito sentido, agora que vos falo, ter buscado a história desse indivíduo que utilizou-se do poder da poesia. 

As contribuições de Iolo Morganwg, o bardo construtor de Gales, obviamente não seriam resumidos nesse texto, contudo espero ter lhe dado um alento histórico e também poético. É relevante lembrar a todos nós, praticantes do Druidismo Moderno, que o legado deste homem deva ser honrado e não mais simplesmente reduzido a uma “fraude”. Ouso dizer que se não fosse os atos históricos de Iolo Morganwg diante a sua realidade de mundo, nós realmente nem estaríamos falando de Druidismo no século XXI. 

Ah! E se você me permite refletir: em 1792 um alferes maçom brasileiro morria por representar um movimento que defendia valores como igualdade e liberdade, por ser um abolicionista e questionar o sistema em que vivia. Seu nome era Joaquim José da Silva Xavier, o famoso Tiradentes. Enquanto isso, do outro lado do oceano, Edward Williams, o Iolo Morganwg, pensava como proclamar-se diante das pessoas como herdeiro das tradições druídicas em Primrose Hill. Sendo que podia ser também preso e julgado por crimes de heresia, afinal, somente em 1951 as leis que condenavam bruxos e feiticeiros foram revogadas no Reino Unido. 

Por Llewellyn Mawr. 




Referências Bibliográficas:

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__________________. The Coelbren Alphabet: the forgotten oracle of the welsh bards. Portland (EUA): Llewellyn Publications, 2017.
HAYWOOD, John. Os Celtas: da idade do bronze aos nossos dias. Tradução de Susana Costa Freitas. Lisboa – Portugal: Edições 70, 2009. 
JENKINS, Geraint H.. Bard of Liberty: The Political Radicalism of Iolo Morganwg. Acessado em E-Book. Cardiff: University of Wales, 2012.
__________________.  Y Digymar Iolo Morganwg. País de Gales: Y Lolfa, 2019. 
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NICHOLS, Philip Ross. The Book of Druidry. Editado por John Matthews e Philip Carr-Gomm. San Francisco, USA: Harper Collings Publishers, 1990.
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PASCHOALIN, Marcelo. A Semente da Bétula: minha prática druídica brigidiana. Santo André, SP: edição do autor, 2017.
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