O Druidismo Moderno - Parte I



“A partir do momento que o tipo celta de sociedade desapareceu, era normal que o Druidismo desaparecesse, uma vez que já não podia ser experimentado como uma religião. Restaram os princípios do druidismo. Mas será que tudo se foi? Certamente que não. Daí a busca apaixonada do Druidismo Moderno, qual seja a sua forma, para tentar encontrar o que foi o pensamento druídico, o que foi o ritual druida.” 

(Jean Markale, 1987) 



O Druidismo Moderno é um constructo simbólico-religioso, cultural, filosófico, social e histórico do mundo contemporâneo ou pós-moderno. Essa construção foi e é creditada, feita e exercida por pessoas de diversas origens, olhares e valores estéticos que se identificam em seu dia-a-dia com os horizontes e possibilidades inseridas nos conhecimentos, saberes e fazeres célticos, tradicionais e/ou ressignificados. Há de se tecer este comentário antes de começarmos aqui qualquer ponderação relevante. 

Etimologicamente, a origem do termo Druidismo vem do seu uso atual para denominar práticas e sistemas de crenças fundamentadas na histórica, cultura e valores das populações celtas. A definição surgiu em estudos ingleses do século XVIII, período que se especula o renascimento moderno da religião druídica. Nem sequer sabemos como os Keltoi denominavam sua religião tradicional, e mesmo a palavra Druida fora empregada na sua forma primeira por gregos e romanos que ficaram espantados em descobrir que entre aqueles que consideravam “bárbaros” havia um grupo de filósofos naturais. Dentre os autores clássicos estão Júlio César, Tácito, Plinio, o velho, Estrabão, Possidônio, Diodoro, Heródoto, dentre outros. Hoje, estudos antropológicos e arqueológicos nos revelam as diferenças consideráveis entre os povos celtas, o que nos informa que não deviam manter uma atividade religiosa congênere por todo o extenso território que ocupavam no continente europeu, da Áustria à Irlanda. 

Ao acrescentar a palavra Moderno para complementar o seu significado, os praticantes e estudiosos desse modo de crença querem afirmar o seu compromisso com o tempo e espaço da modernidade onde está localizada a sua ação druídica. Da língua latina, Modernus denota o que é próprio e pertencente ao nosso tempo, o estado de espírito do tempo que acontece no presente. Mais do que isso, lembra que somos seres humanos que agem e necessitam agir através da mentalidade e constituição moderna: locus de identidades fragmentadas, comunicação rápida, arranha-céus, tecnologia, individualismo, mundo detentor de problemas ambientais, sociais e históricos de seu tempo. 

Nesse sentido a termologia Druidismo Moderno literalmente quer informar sobre a “prática, doutrina ou sistema dos druidas de hoje”. Ou seja, é a afirmativa de que não somos aspirantes de antiquários, nem que vivemos do remonte do passado, muito menos queremos voltar à época La Tène, mas que participamos ativamente dos processos do tempo em que estamos logrados. Inclusive a primeira coisa que os druidas modernos precisam saber e compreender é que a religião clássica e original dos celtas foi esmagada pela roda do destino e que devemos deixar o trabalho da roldana continuar. O que ainda podemos fazer é resgatar e preservar na memória, herança e conexão restante os valores e costumes para autoconhecimento e para solucionar problemas do nosso entorno. 

Dos galhos do Druidismo Moderno nasceram diversos movimentos, como as bagas nas ramas de uma árvore, que geraram por sua vez outras denominações que grupos e pessoas se utilizam, como: Neo-druidismo, Druidaria, Reconstrucionismo Celta, Neo-Paganismo Celta, Mesodruidismo, Igreja Celta, Xamanismo Celta, entre outras. Embora seja recorrente haver muita discussão, e até desavenças sobre o tema da nomenclatura comum, ainda é no Druidismo Moderno que residem as raízes do pensamento druida contemporâneo, que abarca o trabalho druídico acumulado do tempo com os conhecimentos e vivências no presente. 

Mas onde tudo isso começou? Quem são nossos ancestrais na espiritualidade druídica moderna? Boa parte dos esforços que delimitamos sobre as origens do druidismo se finda em dúvidas, já que nós não temos muito que dizer diante as lacunas existentes. Historiadores e arqueólogos nos propõem um proto-druidismo na cultura Hallstat, que teve início aproximadamente no século XII a.e.c. Sabemos que a atividade druida nos acontecimentos históricos registrados data do período do século IV a.e.c., sendo que tudo que sabemos deles, na sua maior parte, foi descrita a partir das representações que gregos e romanos fizeram destes. Também que a tradição adormeceu nas brumas do tempo durante o medievo e muito do que sobreviveu foi graças aos monges copistas e a tradição oral bárdica. De forma poética, um dos mais famosos fundadores do movimento moderno assim nos define a origem do druidismo: 

“O Druidismo é a forma ocidental de uma filosofia, de uma cultura ou de uma antiga religião universal, datando dos dias dos primeiros homens, quando o três eram um. Isto é, da cultura do círculo de pedra, dos bosques de árvores sagradas, da dança circular.” 

(Ross Nichols, 1990) 

Fazendo um breve histórico recente, os druidas modernos e diversos autores chegam ao consenso que o renascimento druídico se deu entre os finais do século XVII e inícios do XVIII. Jonh Albrey, um antiquário e escritor inglês, foi um dos precursores do movimento nos estudos de monumentos megalíticos relacionando-os aos druidas, como por exemplo, o conhecido conjunto de megalitos Stonehenge. Nesse sentido, Jonh Albrey preparou um campo de possibilidades do que viria depois. 

O mais provável tempo-espaço do renascimento da prática druídica e o marco histórico do Druidismo Moderno credita-se a fundação da Druid Order pelo irlandês John Toland, nos finais do ano de 1717. Ou seja, além do Druidismo Moderno ser uma reformulação de costumes religiosos de populações célticas que viveram no período clássico e medieval, também estamos falando de uma religião que tem pelo menos trezentos anos de existência contemporânea. 

Outro importante nome desse período é William Stukeley, um antiquário inglês e pioneiro na arqueologia que se interessou pelos estudos de John Toland e também realizou seus próprios estudos sobre monumentos megalíticos e sua relação com os druidas. De acordo com Ross Nichols e Philip Carr-Gomm, ao entrar para a maçonaria, William Stukeley conheceu a princesa de Gales Augusta, mãe de George III da Inglaterra, e descobriu que ela tinha também interesse no druidismo e apadrinhou um grupo que fora ele o organizador. O poeta e desenhista inglês William Blake também atuou principalmente com seus desenhos das construções megalíticas e afirmações de que o druidismo era uma vertente abraâmica. 

Algo importante a frisar é que o momento do Renascimento do Druidismo está repleto de valores cristãos e sentimentos nacionalistas. As personagens históricas acima citadas foram importantíssimas para o reavivamento do druidismo, mas estavam ligadas ao um grupo de intelectuais e nobres interessados em estudos ocultos, acreditando e afirmando que o druidismo era monoteísta, que seu sistema era semelhante aos patriarcas judaico-cristãos e de que os dolmens, menires e cromeleques eram fruto de uma engenharia druídica. Embora ainda perdure de alguma forma essas afirmações, hoje os druidas modernos já as desmistificam, através de estudos contemporâneos provindos da arqueologia e da história. 

“Até hoje, ninguém encontrou provas documentais sólidas da reunião de 1717, mas a tradição é suficientemente plausível. A Inglaterra do século XVIII estava explodindo com os agrupamentos de sociedades, clubes e ordens secretas ou semi-secretas, a maioria delas mal documentadas. Mesmo organizações famosas como a Maçonaria, que fundaram sua primeira Grande Loja no mesmo ano, preservaram poucos registros deste período. Uma sociedade druida poderia muito bem ter florescido em Londres na época e deixado apenas vestígios equivocados de sua existência. Ainda assim, se a reunião de 1717 aconteceu ou não, é claro que nestes anos o Renascimento Druídico mais amplo estava em andamento.” 

(John Michael Greer, 2006) 


Ainda de acordo com Philip Carr-Gomm, existem três grandes correntes do revivalismo druídico, depois desses fundadores. O primeiro movimento é o Druidismo Romântico ou Mesodruidismo, que surgiu entre os séculos XVIII e XIX no País de Gales, através da instituição do Eisteddfodau e da Gorsedd dos Bardos Britânicos. Pode ser considerado o movimento de renascimento do druidismo de hoje e um de seus mais famosos autores e inspiradores foi Iolo Morganwg, que utilizou textos e compilações, colaborando histórica e poeticamente com grande parte do que se constitui hoje a prática de festivais bárdicos e rituais druídicos. 

O segundo movimento é o Druidismo Esotérico ou Maçônico, este pelo qual foi fundado pela Antiga Ordem dos Druidas, por Henry Hurle em 1781. Como está no nome, foi organizada a partir dos moldes maçônicos, onde era incentivada a ação filantrópica, reuniões de grupo e cerimônias inspiradas nos modos de irmandades. Segundo Philip Carr-Gomm, as lojas druídicas se espalharam por todo Reino Unido, inclusive partes da Europa, onde os ritos consistiam em colocar uma Bíblia em um estrado e proibições de discussão entre membros, onde o título de Druida não era dado por mérito de estudos ou treinamento, mas como um cargo honorífico. 

O terceiro movimento é o Druidismo Filosófico-Religioso, que teve seu início em meados do século XX, com a fragmentação dos movimentos anteriores, aliada a tentativa de tornar o Druidismo um caminho espiritual moderno. Um dos nomes mais conhecidos desse movimento é Philip Ross Nichols, conhecido também como Nuin, que junto a Gerald Gardner são considerados os pais do Paganismo Moderno. Ross Nichols foi o fundador da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas e quem introduziu grande parte das noções míticas, poéticas, filosóficas, de treinamento/estudo e da celebração de oito festivais sazonais. Desse movimento surgiram muitos autores druidas, que basearam suas práticas em fontes da tradição e de estudiosos. 

Acrescentaria um quarto movimento, denominado Reconstrucionismo Celta ou Druidismo Academicista, surgido na década de 1990. É um tipo de manifestação druídica recente, onde seus praticantes se baseiam primordialmente, chegando mesmo a restringir seus rituais e práticas religiosas as estritas provas científico-acadêmicas provindas dos estudos da História, Antropologia, Linguística, Arqueologia, dentre outros. Alguns grupos são fechamos e até mesmo ortodoxos a determinados conceitos de movimentos antecedentes, mas alguns tem se aberto ao diálogo e dão grande contribuição em relação a leituras e textos provindos de diversas universidades e estudiosos, na sua maioria não-druidas. 

Mas afinal, como é praticar o Druidismo Moderno? Será que ainda há função em uma crença inspirada em aspectos tão antigos? Para responder essas perguntas é necessário primeiro entender do que a crença dos druidas na atualidade se nutre.

Por Llewellyn Mawr 

Link: PARTE II





Referências Bibliográficas:

CARR-GOMM, Philip. Os Mistérios dos Druidas: sabedoria antiga para o século XXI. Tradução de Paulo Rodrigues. Sintra, Portugal: Zéfiro, 2008.
__________________. Elementos da Tradição Druida. Tradução de Maria Alda Xavier Leoncio. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994.
GREER, John Michael. The Druidry Handbook: spiritual practice rooted in the living earth. York Beach, ME, Canada: Red Wheel/Weiser, 2006.
MARKALE, Jean. Le Druidisme: traditions et dieux des celts. Paris, França: Payot, 1987.
MATTHEWS, Jonh. Xamanismo Celta. Tradução de Claudio Crow Quintino. São Paulo: Hi-Brasil Editora, 2002.
NICHOLS, Philip Ross. The Book of Druidry. Editado por John Matthews e Philip Carr-Gomm. San Francisco, USA: HarperCollings Publishers, 1990.
ORR, Emma Restall. Princípios do Druidismo. Tradução de Ana Luiza Barbieri. São Paulo: Hi-Brasil Editora, 2002.
SENEWEEN, Rowena Arnehoy. Brumas do Tempo: poesias, pensamentos e ritos druídicos. São Paulo: AGBooks, 2011.


Obs.: Esse texto foi também publicado na Revista Ophiusa no ano de 2017, pertencente a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas de Portugal.

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