Por que me desliguei do Druidismo?

"O Caldeirão de Annwn" - por Hugo Cezar F. Gondim, 2021

Eu era um garoto de 13 anos quando li pela primeira vez a palavra "druida", sentindo uma incrível conexão com uma sabedoria do qual não sabia explicar. Até aquele momento tinha tido uma educação católica e minha fé estava depositada em Jesus Cristo e Nossa Senhora, assim como minha festividade preferida era as Festas de São João e as celebrações Natalinas. Nas minhas orações eu pedia pelos animais, as árvores e o meio ambiente, pois minha geração foi criada para viver o apocalipse ecológico. Por vários motivos fui me afastando da Igreja Católica Apostólica Romana e da minha raiz materna nordestina - algo que foi muito dolorido e frustrante para minha mãe - e assumindo um esoterismo indefinido, fragmentado. Lembro de meu primeiro livro que abordava práticas neo-pagãs, focando-se na Wicca. Quase foi jogado no lixo quando minha mãe viu. Meu pai também nada aprovou. Com um certo receio obtinha algum apoio da minha irmã. Mas no fundo ninguém queria uma pessoa esquisita na família, embora eu questionasse meu lugar no mundo. Um local que foi sendo minado e malhado com o tempo. 

Nas minhas jornadas, lancei-me escrevendo um blog chamado Druida do Vento. Encontrava dia após dia pessoas interessadas em paganismo e conversava com várias pela internet. Acreditava estar encontrando uma comunidade para mim, o que de fato era uma ilusão. Eu era um jovem, porém todos me comunicavam que eu me comportava como alguém que sabia muito ou como um ancião, disseram até que minha "alma era antiga" ou que era a reencarnação de um druida. Também eu buscava algum conhecimento para mim, lendo livros sobre druidismo e praticando solitariamente a espiritualidade - o que me deixava um pouco confuso e triste. Um dia mandei fazer uma túnica para me vestir. Lembro de ir a costureira e ela achar que eu seria Franciscano - o que foi um tapa na minha versão católica já enjaulada. E quando sobre meu corpo caiu aquela túnica era como se eu sentisse que tinha vestido o que eu era de verdade.

Por muito tempo ser Druida do Vento foi uma batalha entre ele contra eu mesmo, minha família, meus amigos e meu mundo. Num processo psicológico adolescente eu estava negando todo o mito original que ritualizava meu cotidiano "normal", do qual não desejava fazer parte. Era outra pessoa quando vestia a túnica, quando assumia o nome, quando performava, mesmo que todos me rejeitassem - pois desde cedo eu já havia aprendido que seria excluído. E foi numa deusa dos rejeitados que me inspirei: seu nome era Blodeuwedd. Quem queria se conectar a mulher coruja que traiu a expectativa dos outros? Todos queriam Brigit, Dagda, Arianrhod, Lugh, Caileach, Danna, Gwydion, Mannanán, só os deuses populares e justos. Mas eu me conectei com a história da deusa que foi punida por não se encaixar no mundo humano, mesmo se esforçando o máximo para isso. Uma alma solitária, sem lugar, fora do tempo, internalizada, apátrida. A única deusa do panteão celta do qual poderia me dedicar. 

Recordo-me que conversava com muitas pessoas, mas foi quando as vi pela primeira vez em algum tipo de feira, seminário ou encontro que o desencanto e a frustração foram palavras de ordem. Algumas delas não me trataram como era de costume pela internet, inclusive descobri que alguns me odiavam ou me achavam esnobe. Fui apontado como "cosplay de druida", como uma pessoa que força algo que não é, como um jovem inconsequente, uma mistura sem fim e nada original. De palavra em palavra, as pessoas que acreditava piamente que eram minha comunidade, foram me ferindo e me destruindo. Uma comunidade da qual posso dizer, muito egoica e tóxica. Posso contar nos dedos de uma mão as pessoas que de alguma forma quiseram meu bem no meio druídico brasileiro. Na sua maioria os druidas brasileiros são presunçosos, egoístas, excludentes, falsos e insensatos - e isso não é uma acusação, é um fato. Os grupos de estudo, que são poucos, no que compete ser um lugar acolhedor, são como portas fechadas. Mas eu me mataria por eles todos, eu fazia qualquer coisa para tentar me encaixar, para que me vissem. 

Como se sabe, isso não foi possível. O Druida do Vento foi morto. O blog se desfez e eu me isolei por um tempo da comunidade. Afinal, além de tanta decepção, ainda mais podres vieram a tona, de alguns integrantes abusadores. No mesmo período, a comunidade local que havia construído, tão aglutinada, também entrou em decadência. Minha amiga bruxa que era um dos alicerces junto a mim, se mudou para fora do país. Também outros bruxos, magos, líderes espirituais foram me abandonando. Literalmente tudo o que havia erguido estava ruindo e comecei a me questionar pela primeira vez se eu estava vivendo o que eu queria. Para piorar, o fim do processo de estudo na faculdade e as crises na família me abalaram profundamente. Estava sozinho, excluído, fora do eixo mais uma vez. A história de Blodeuwedd parecia ser a narrativa da qual eu poderia me alimentar de novo, uma espécie de fortaleza de flores, sangue, culpa e dor sobrevoada por corujas. 

Um novo nome, um novo site, uma nova performance, um novo eu sairia dali: Llewellyn Mawr. Foi quando tive uma psiquê histérica chamada Nawfed Pwer, acreditando ter encontrado a chave para o segredo da mítica do quarto ramo do Mabinogion. Guardei-a para mim, pois senti que não devia compartilhar com ninguém, pois haveria mais um desencanto. Agora um jovem tentando se proteger daqueles que haviam o excomungado. Porém uma das poucas pessoas que tenho como druidesa me convenceu a ir ao encontro com todos novamente e partilhar minhas ideias  mais uma vez. E naquele encontro eu senti que algo havia se partido ao meio, do qual eu escolhi um lado que sempre defendi. As pessoas tinham se tornado piores que anteriormente. Agora estavam divididas em partidos dicotômicos como deuses e gigantes, anjos e demônios, água e óleo, druidismo e reconstrucionismo. Embora tenham dito que houve "cura", para mim havia só veneno. 

Ainda não entendo completamente, mas eu queria me enquadrar nesse lugar. Sim, continuei me sacrificando para isso. Percebi nessa jornada, conversando com pessoas - que haviam se afastado do druidismo e recon - que eu tinha algo em comum com elas, que também foram deixadas de lado, não conseguiram se encontrar. Perguntei-me mais uma vez se não estaria eu esgotando a minha vida para algo que era deletério. Pois, afinal, eu observava que essas pessoas que se afastaram estavam felizes e encontrando-se, lutando pelo que acreditavam realmente, sendo quem elas eram para si e para o mundo. Llewellyn Mawr era mais uma ilusão, uma roupa mais xadrez e higienizada que estava eu utilizando, para me aproximar da druidareconstrução. Contudo, o druida é um velho enquanto eu era um jovem e reconstruir não me agradava, já que combinava com um espírito reacionário. 

Eu tentei pela terceira e última vez. Permaneci como Llewellyn Mawr, assumindo-o como um nome bárdico e ligando-me a uma ordem do exterior, pois as brasileiras jamais me consideraram alguma coisa. Decidi criar uma pequena comunidade local, fazendo encontros, estudos e eventos. Por me interligar a história de Blodeuwedd eu me adequei ao País de Gales. Os rituais com nomes irlandeses foram substituídos por galeses. Os deuses passaram a ser apenas os citados no Mabinogion, com exceção de alguns pan-célticos. Quis adequar minha pequena comunidade a uma liturgia puramente galesa, com as insignias e as origens bárdicas, como o Coelbren. Sobre o planalto da Serra de Maracaju, assim como os bardos galeses, eu quis fundar uma Gorsedd. Eu estava ávido por uma identidade nacional, enquanto a minha nação passava por um roubo de seus símbolos. Assim como minhas estruturas familiares, amizade e relacionamentos estavam sendo destituídas. Precisava de uma pátria, de um panteão, de uma paixão. O meu nome bárdido era o mesmo do último rei do País de Gales, uma expressão máxima da alma solitária desejando ser preenchida com algo que fosse tão valioso e memorável.

De tentativa em tentativa, essas performances foram entrando em decadência. Nesses ultimos tempos sombrios políticos, econômicos e sociais agravados pelo período de pandemia de Covid-19 me deixaram mais descrente e desesperançoso sobre a vida, os humanos e os deuses. A vida e o planeta parecem estar indo para um caminho derradeiro de morte. Os humanos ao meu redor não são o que eu pensei. Os deuses de qualquer crença não respondem mais a minha expectativa. Senti que Blodeuwedd se despediu de mim, que os ritos ficaram vazios. Ou que o vazio que há dentro de mim é tão imenso que nada mais pode o encher. Nem família, nem amigos, nem inimigos, nem colegas, nem comunidade, nem paixões, nem símbolos, nem deuses... mergulhei no nada, no Caldeirão de Annwn. Despi-me para meu banho no caldeirão, entrei na água fervente e me desmanchei no grande vazio. Que as nove musas me libertem de mim! 

Na noite de 18 de Setembro de 2021, ao terminar de pintar o quadro intitulado "O Caldeirão de Annwn", me desobriguei ao compromisso com o Druidismo, liberei os druidas da minha vida agradecendo seus conhecimentos e tendo consciência que 15 anos se passaram, uma parte da minha vida. "É mais importante tomar uma decisão e não a decisão tomar você", sempre foi a frase que me acompanhou. Então eu decidi abandonar a espiritualidade em sua totalidade. Agora é hora de ir me encontrar no vazio, de ser quem eu verdadeiramente devo ser, algo que está na origem quando me deram o nome de Hugo Cezar. Se queres um conselho: não perca seu tempo com uma imaginação do passado ou com ideações de um futuro inexistente. Meu trabalho se encerra com esses 28 anos de vida, pois eu morri para essa faceta. Eu liberto os deuses, especialmente Blodeuwedd, os druidas, o movimento e conhecimento druídico, os grupos de estudo, Druida do Vento, Llewellyn Mawr, a Gorsedd, cada um de vocês. Estou no grande vazio. Que ele me devore! Lá no fundo vou encontrar a confiança no único ser que devo me conectar: eu mesmo.

Comentários

  1. Sinto muito por tudo que passou. Sinto muito por tudo que sentiu. Estar no vazio pode ser acolhedor. Encontrar a si mesmo é recompensador (quantas vezes é necessário esse encontro?)
    Enfim, que seja devorado e que encontre o que busca.

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  2. Vai fazer muita falta. Mas te entendo perfeitamente. Fique em paz

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  3. Querido Hugo! Como me entristece saber disso, pois a lembrança que tenho de vc é sua devoção e seu riso! Espero que encontres o que busca, e se precisar conversar, conte conosco aqui nas bruxas da Quebrada!

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