Ciclo III: Reler o Mito com Outros Olhos
E se pudéssemos ler o mito sobre uma ótica mais lúdica, retirando os véus seculares que camuflam símbolos tão simples através das alegorias presentes no Quarto Ramo do Mabinogion? Os mitos trazem mistérios em seu interior que os bardos podem traduzir para os que decidem se iniciar neles. Precisa-se de uma chave: sensibilidade. E para isso, é necessário libertar nossa criança interior e não levar muito a sério tudo que ali está escrito, recriando uma narrativa que vá trazer um sentido original e ordenar uma lógica mais brincante, como fazem os contadores de história. E isso que proponho aqui, através de uma releitura mítica que mostra os personagens do conto galês onde Blodeuwedd se apresenta como seres originais da criação e o próprio universo como um grande caldeirão onde somos parte como ingredientes do elixir da vida.
O mais interessante a
observar é que essas divindades parecem morar no céu, como estrelas e
constelações que lembram a Ursa Menor e Maior, Corona Borealis, Plêiades,
signos como Virgem, Áries, o próprio Sol, a Lua e muitas outras referências que
parecem encenar uma dança cósmica das antigas observações dos camponeses e
agricultores em relação as estações do ano, a noite e ao dia, as dualidades do
universo (o masculino) que são equilibradas por uma terceira força (o
feminino). Para nós, contemporâneos cheios de parafernálias tecnológicas, isso
parece mesmo uma brincadeira de criança. Para nossos ancestrais, acredito que
era uma forma poética de traduzir os ciclos da natureza, algo importantíssimo
para sua sobrevivência.
Eu lhe convido a
colocar os seus óculos que possam ler as entrelinhas da poética e assim poder
ver uma outra história, quem sabe contada há milênios numa pequena choupana ou
tenda, numa noite ao lume do fogo central iluminando todos os expectadores
diante o encanto das palavras de um bardo e da música de algum instrumento de
cordas primitivo.
Uma
adaptação do mito original
No início de tudo, o Caldeirão do Universo era apenas noite e estrelas. O Urso Estelar, filho da Estrela-mãe Ursa, precisava
de uma virgem para que continuasse reinante nos céus e sobre a paz dos astros,
já que a Terra tinha sido violada por seu sobrinho malvado. O Mago das
Plêiades, seu outro sobrinho que reinava na Via Láctea, o aconselha a convidar
a Roda de Prata que mora na Corona Borealis, pois ela seria a virgem perfeita. Feito
isso, o Urso Estelar esperou que Roda de Prata chegasse em seus reinos celestes.
Quando ela veio, o Urso Estelar perguntou: “Tu és virgem mesmo?”. E Roda de
Prata o respondeu: “Sou, não vês?”. Então o Urso Estelar colocou sua varinha
mágica no chão e disse: “Passe por cima desta varinha e vejamos se é virgem”.
Roda de Prata passou pela prova e pariu imediatamente dois filhos: O Mar e o
Sol. Logo que o Mar nasceu, ele se espalhou pela Terra, nadando pelas suas
ondas e dizem que nunca mais foi visto na imensidão. O Sol, por sua vez, era
muito fraquinho, e o Mago das Plêiades decidiu o esconder de todas as outras
estrelas e constelações, pois precisava crescer para ser a maior estrela do
céu. Roda de Prata voltou para seu castelo e o Urso Estelar reinou no céu por
mais algum tempo. O Mago das Plêiades decidiu criar o Sol como um pai adotivo,
e o ensinou tudo que sabia. O Sol foi crescendo muito rápido, mas não tinha um
nome. O nome só podia ser dado por sua mãe Roda de Prata, segundo a tradição,
que nem sabia de sua existência. O Mago das Plêiades levou Sol até Corona
Borealis, ambos disfarçados de artesãos. Sabiam que Roda de Prata gostava de
sapatos, e lhe ofereceram o trabalho. Quando ela viu o menino Sol, percebeu que
ele era uma estrela muito brilhante e grande. Observando sua destreza, disse:
“Você é Brilhante com suas Mãos Habilidosas!”. E assim, o Mago das Plêiades respondeu:
“Olhem! Ela deu um nome a seu filho, e um belo nome, Brilhante das Mãos
Habilidosas”. Roda de Prata não gostou de ser enganada, já que seu reino era
tão brilhante quanto aquela estrela jovem. Então disse aos dois: “Pois bem, ele
tem um nome, mas nunca será um guerreiro e nenhuma estrela o respeitará”. O
Mago das Plêiades afirmou categoricamente: “Ele será e você irá o armar com
lanças flamejantes de muito poder”. Depois de mais alguns anos, Sol tinha se
tornado maior e já era um jovem. Então o Mago das Plêiades decidiu retornar a
Corona Borealis, disfarçando ele e o menino com mágica para que Roda de Prata
não os reconhecesse. Foram muito bem recepcionados como grandes poetas no
castelo reluzente, animando a corte lunar. Então, o Mago das Plêiades cantou
uma música aterrorizadora, que fazia com que parecesse que Corona Borealis
estivesse despencando do céu. Roda de Prata somente pensava que eram seus
inimigos na escuridão atuando com forças malignas, e pediu para que armassem
todos no castelo. E assim, ela mesma armou seu filho Brilhante das Mãos
Habilidosas com lanças flamejantes, e toda a ilusão foi desvendada. Então a
noite foi substituída pelo dia, a Roda de Prata e as estrelas desapareceram, e
todo o céu se encheu de luz. O Mago das Plêiades disse: “Consegui o que queria!
O Sol é grande e está armado, todas as estrelas o respeitarão de agora em
diante”. Roda de Prata viu que o céu noturno tinha mudado, e as estrelas tinham
sido ofuscadas pelo poder de seu filho solar. O Urso Estelar não era mais o
grande rei. As reinos constelares não conseguiam brilhar mais quando o dia foi
criado. Exclamou ela, com um riso maligno: “Pois bem, ele tem nome e agora
lanças flamejantes, mas não terá nenhuma esposa no céu para reinar na Terra,
porque eu o proíbo”. E o Mago das Plêiades disse: “Mãe malvada! Isso não ficará
assim, pode ter certeza! Ele terá
uma esposa”. Sem uma rainha, sem a Soberania, o Sol não seria nada e seu poder
não se perpetuaria na Terra. Mas então o Mago das Plêiades recorreu a seu tio
Urso Estelar, justificando seu pedido: “Como Sol poderá ficar sem uma esposa?
Ele não terá como perpetuar sua glória na Terra”. O Urso Estelar então lhe
disse: “Embora não tenha gostado muito de desaparecer dos céus, garanto que ele
não ficará sem esposa, pois vamos criar uma através da magia e das flores que
desabrocham da Terra, ela será a própria Soberania encarnada”. Então, o Urso
Estelar e o Mago das Plêiades desceram até a Terra e colheram flores diversas,
de onde criaram a Face das Flores, tão bela que com suas pétalas brancas
ofuscava o sumiço das estrelas. Era como uma estrela, porém não nascera no céu,
o que quebrava a maldição de Roda de Prata. Quando o Brilhante das Mãos
Habilidosas avistou a Face das Flores, se apaixonou perdidamente, assim como
ela também o amou, e os dois casaram-se. O casal viveu por muito tempo felizes
e com muito amor, e o mundo viu muita prosperidade – nesse momento todos os
seres vivos nasceram e se espalharam sobre a Terra. Face de Flor desabrochava
toda sua beleza sobre a Terra, enquanto seu marido Sol irradiava sua luz e
calor para sua amada, no alto céu. Todavia, o dia era incessante e Face das
Flores percebeu que suas pétalas estavam murchas e sem vida. Ela percebeu que a
luz e o calor do Sol sufocaram algumas de suas lindas flores. Sua delicadeza e
beleza eram frágeis. Muitas estrelas estavam irritadas também com o fim da
noite. Foi quando o Urso Estelar pediu para o Brilhante das Mãos Habilidosas ir
ter uma reunião no Reino Celeste, e sua luz ficou um pouco mais fraca, já que
se afastou da Terra. Assim, Face de Flores viu que sua beleza se alegrou e se refrescou
com menos luz. Ela ficou sozinha, esperando seu amado rei solar quando um outro
ser celeste e reluzente pareceu: “Eu sou Radiante e preciso me hospedar por uma
noite na Terra”. Face de Flores decidiu ser hospitaleira, mas algo lhe causava
amor por Radiante. Ele era menos luminoso, mais sombrio, deixava a noite
descansar suas belas flores. E então, Face de Flores se entregou a Radiante,
que se tornou seu amante. Ele pediu algo a ela: “Não posso me separar de você
por muito tempo, por isso peço que descubra como destruir o Sol, já que ele não
me deixa reinar com sua grandeza e suas armas flamejantes. Muitas constelações
gostariam que eu governasse ao invés dele!”. Face de Flores consentiu em
descobrir como matar Brilhante das Mãos Habilidosas, e quando ele retornou de
sua reunião celeste, ela foi o procurar: “Meu esposo brilhante, quero saber
como alguém pode o destruí-lo, tenho medo que possa perder minha beleza sem sua
luz”. Ele a respondeu: “Nada pode me destruir, somente se eu for acertado com
uma lança de um oponente, quando um banho inusitado for preparado para mim e
apenas quando me posicionar em uma casa da Via Lactea daqui um ano e um dia,
onde um pé eu colocarei na borda do Caldeirão do Universo e outro eu colocarei
nas costas da constelação que lembra um bode. Só assim alguém pode destruir
minha força”. Face de Flores preparou o banho e pediu para que Brilhante das
Mãos Habilidosas fosse testar esse cenário com ela, para que se tranquilizasse.
Ele aceitou e quando menos esperava, foi alvo de um golpe desferido por
Radiante, seu oponente. Então o dia sumiu, a luz diminuiu, as estrelas e a lua
voltaram a reinar no céu, o frescor da noite apareceu e Sol se transformou numa
ave decrépita que voou e pousou em cima de um velho Carvalho. Face de Flores e
Radiante uniram seus reinos, e assim a Noite e a Terra se casaram. O Mago das
Plêiades observou de seu reino na Via Láctea que a luz do mundo desapareceu e
que tudo tinha ficado escuro, sendo que o caos voltou a reinar. Viu que as
constelações voltaram a brilhar muito, e desconfiou da ausência de seu filho
adotivo, o Brilhante das Mãos Habilidosas. Então ele desceu de seu reino e foi
até a Terra para averiguar o que acontecia. A noite e o frio estavam governando
tudo, as flores não desabrochavam e havia desolação. O Mago das Plêiades chegou a casa de um
fazendeiro, que mesmo dono de terras, estava com fome. O fazendeiro disse ao
Mago das Plêiades: “Minha porca, minha única porca que tenho para comer, sai
todos os dias da pocilga e vai até a floresta. Não sei por que ela faz isso,
mas sempre chega gorda. Estou morto de fome, mas sempre ela me escapa e vai à
maldita floresta!”. O Mago das Plêiades desconfiou daquilo. No outro dia,
seguiu a porca que fugiu mais uma vez da pocilga daquele pobre fazendeiro. Ele
avistou que a porca estava comendo restos podres de carne aos pés de um
Carvalho velho e sem folhas, quase sem vida. Em cima de seus galhos, uma Águia
lançava aquela podridão para o chão e suplicava com muita dor. Foi quando o
Mago das Plêiades recitou um poema mágico, pois desconfiou que aquele era o Sol.
E disse: “Fale comigo se é você, Brilhante das Mãos Habilidosas, em cima desse
velho e sombrio carvalho?”. E a Águia voou até os braços do Mago das Plêiades,
que arrancou a lança de seu peito, fazendo Sol tomar sua forma novamente, porém
doente e muito franzino. Como antes, o Mago das Plêiades levou-o para seu lar
para cuidar de seu filho adotivo, o curando de suas mazelas e dores. Quando se
recuperou, planejaram junto ao Urso Estelar invadir a Terra e retirar do poder
Radiante e Face de Flores. Com êxito, eles tomaram a Terra de volta, prenderam
e julgaram Radiante e a conspiração das estrelas. Face de Flores correu pelas
florestas, para fugir de qualquer sentença. Mas o Mago das Plêiades a encontrou:
“Você veio das Flores e agora você será uma Coruja. Foi esposa de Sol e amante
de Radiante, e assim você será para todo sempre, para que a Noite e o Dia, a
Luz e a Treva, o Calor e o Frio, o Verão e o Inverno existam e equilibrem o
universo. Na proximidade da Primavera, as forças de Sol estarão grandes, ele
governará e se casará contigo, a Terra, sob a Face das Flores. Então as forças
da luz declinam no Outono, eu levarei Brilhante das Mãos Habilidosas para se
recuperar, já que um golpe ele sofrerá, e Radiante tomará você, a Terra, como
sua amante sob a face da Coruja. A Luz e a Escuridão irão disputar seu amor e
assim surgirão as estações do ano, o ciclo, a magia que se repetirá por todas
as eras e tu será a senhora regente desse poder”. E assim, Face de Flores também se tornou Coruja, trazendo em si a energia sábia e selvagem da natureza.
Comentários
Postar um comentário