A Mulher no Mundo Celta

A mulher no mundo celta por © Viviana E. O’Connell
Texto original em espanhol publicado na Revista Sitio Al Margen
Tradução e adaptação por Llewellyn Mawr fab Blodeuwedd © 2015


Eva Green interpretando Morgana Le Fay na série de televisão britânica Camelot (2011)

A mulher celta não existe. Esta é a primeira conclusão que cheguei depois de uma busca infrutífera nos vários materiais de bibliotecas sobre ela (1). Com bastante frustração, consegui extrair algumas linhas depois de ler vários volumes. Este silêncio histórico não é casual, pode se dever em parte a questão de gênero e em parte por se tratar de um povo primeiro vencido pelos romanos e, consecutivamente, em seu ultimo abrigo – a Irlanda – conquistado de maneira pacífica pela fé católica. 

O modelo da mulher celta enfrentava, a princípio, o modelo grego-romano e depois o modelo judaico-cristão. Nada melhor que os romanos para dizermos o que a mulher celta provocava neles. 

Tácito em seu relato da invasão da Ilha de Mona (I) as menciona como “mulheres desgrenhadas de vestes negras, brandindo tochas em fúria”. 

Amiano Marcelino (330-395 d.C.) a descreve, audaz em transitar de uma discussão a violência física, e comenta: “O colo inflado, os dentes rangendo e brandindo os enormes braços pálidos… ela dava socos ao mesmo tempo que pontapés, como se fossem projéteis de uma catapulta”. Outras linhas fazem referência sobre o seu valor. “Todo um pelotão de estrangeiros – dizem – não podia resistir ao ataque de um só gaulês se esse se fazia acompanhado e ajudado por sua esposa. Estas mulheres são, geralmente, fortíssimas, tem os olhos azuis, e quando se enfureciam, fazem ranger os dentes, e movendo os alvos braços com força começam a aplicar formidáveis socos, acompanhados de terríveis pontapés”.

Desenho de O’Keeffe, obtido na revista Shamrock.

Julio César se refere a elas dizendo: “Uma mulher celta zangada é uma força perigosa a qual haverá que temer, já que não é raro que lutem unidas a seus homens, e às vezes, melhor que eles”.

Plutarco, em seu tratado de virtudes femininas, conta várias anedotas sobre as mulheres celtas. Uma mulher celta chamada Kinimara relatando ao marido que tinha sido atropelada e violada por um estranho, o apresentou na mesma hora a cabeça do criminoso.

A respeito da permissividade sexual da mulher celta que comenta Julio César em A Guerra das Gálias, em que menciona o costume britânico de compartilhar uma mulher entre vários homens. Dião Cássio (150-225 d.C.) documenta uma entrevista entre Júlia Domna, esposa do imperador Severo (193-221 d.C.) e uma mulher da Caledônia. A conterrânea fala sobre a liberdade com que as mulheres de seu povo concedem ao que os celtas chamavam de “Amizade das Coxas”. A caledônia respondia ao passo que os modos de seu povo são superiores aos dos romanos, posto que em seu povo tudo se fazia de uma maneira direta e aberta. Elas, as mulheres de seu povo, podiam juntar-se sem pudor com o maior dos homens, enquanto as romanas, com o segredo que seus falsos valores de responsabilidade as impunham, nem mesmo podiam encontrar amantes entre aqueles a quem não assustava saciar-se em parcerias furtivas.

A mulher na velha Irlanda – único lugar do mundo celta que nunca foi visitado por legiões romanas, mantêm sua independência até o século XII, e a fins práticos, uns três séculos mais – estava quase em um plano de igualdade com o homem. Em particular, as mulheres importantes, que não só impunham essa igualdade, mas também em alguns casos, sua superioridade. A mulher permaneceu emancipada e foi frequentemente distinguida por sua profissão, classe e fama.

As antigas lendas falam de mulheres sábias, médicas, legisladoras, druidesas, poetisas, o qual implica que naquele tempo não havia nada incomum em as mulheres ocuparem estas posições dentro da sociedade. The Brehon Laws decidiam que o homem tinha a chefia no casamento; contudo, ele não é dono de sua esposa posto que o matrimônio somente é um contrato entre eles. O Crith Gablach estabelece um édito discutindo acerca dos privilégios de um homem de classe nobre: “a sua mulher pertence o direito de ser consultada sobre cada assunto” (2).

Tampouco elas eram excluídas do privilégio da educação, pois existem numerosos registros disto. São Mugint funda uma escola na Escócia no século VII em que estudavam tanto meninas, como rapazes. Na escola de São Fenian em Clonard, no século VI, presenciava mulheres. No ano 932, os Anales dos Quatro Mestres registram a morte de Uallach, filha de Muinnechan, “a maior poetisa da Irlanda”(3).

Também houve rainhas e esposas dos reis, que fizeram sentir seu peso na história, como também as guerreiras.

Antes do casamento, a mulher era cortejada e conquistada como um ser superior, e no exercício de seus privilégios podiam desdenhar, olhar com asco as atenções até de reis e príncipes, escolhendo a quem queriam. Logo depois do casamento, ela não era propriedade de seu marido, eram companheiros em uma aventura matrimonial. A esposa permanecia dona exclusiva de suas propriedades, e tampouco as propriedades conseguidas juntamente ou possuídas por ambos podiam ser vendidas ou cedidas pelo marido; seus direitos sobre os bens comuns eram iguais e para dispor deles era necessário o voluntário consentimento de ambos. A mulher casada podia prosseguir em um caso legal, podia ser titular de direitos e processar os seus devedores. Quando se reclamava sobre as coisas de um devedor, ela apreendia as coisas apropriadas para uma mulher, artigos tais como fusos, espelhos, etc..

Na herança da terra, o varão era o preferido, porém a mulher tinha o Coibche, porção matrimonial, para além de seu estatuto. A filha herdava se não houvesse filhos, mas em virtude de sua posse tinha que prover e pagar um guerreiro quando se pagavam tributos militares (4).

O Coibche, Tinnscra ou Tochra (II) de uma mulher, embora usado às vezes como dote, era mais propriamente o preço que o noivo pagava ao pai da noiva ou a própria noiva. As velhas leis diziam que devia ser pago em prazos anuais. Ia para o pai da noiva o total do primeiro ano, dois terços o segundo ano, a metade no terceiro ano, e assim, sucessivamente. Para a esposa ia o resto. Havia outro pagamento chamado Tinol, um donativo coletivo dado pelos amigos do casal, dele o homem tinha direito a dois terços, e a mulher a um. Nos casos de separação legal, se decretava o direito da mulher de ficar com toda a sua porção matrimonial e os donativos de casamento, mais outra quantidade por indenização.

Sabe-se que a mulher podia ser extremamente rica, em uma câmara funerária encontrada em 1953 em Vix, próximo de Chantillion-sur-Seine na Borgonha, que guardava o corpo de uma princesa sequana (III) se encontraram objetos procedentes desde o Báltico até o Mediterrâneo, desde braceletes, colares de pérolas, etc..

A riqueza se fazia unida a autoridade, e se ocorria que a esposa fosse a mais rica, a aceitavam como cabeça da família e dominante. Tal é o caso de Cartimandua, rainha dos Brigantes (IV), que demonstra isto no trato que dera a seu marido, o guerreiro Venutius, a quem recusou seus favores a um de seus cavaleiros, Vellocatus.

Também podia ostentar comando militar, um exemplo disto é o caso de Boudicea, ou Boudicca – “Vitória” – rainha e capitã dos britânicos Icenos (V). Ela foi quem rompeu as fileiras da IX Legião romana com sua quadriga (VI) de eixos cortantes. Sabe-se que este não é um caso isolado devido à quantidade de armas e armaduras de mulheres encontradas em escavações. Existiram mulheres guerreiras no mundo celta que até ditaram às leis que proibiam no ano 697 a influência de São Adomnán (VII), e possivelmente esta prática teria continuado por mais dois séculos após a aprovação das leis.

“Scatagh, a deusa guerreira”, ilustração de Arthur Rackham para o livro de James Stephens “Contos de Fadas Irlandêses” (obtido do livro “Los Celtas” de Roberto Rosaspini Reynolds).

Além de guerreiras, podiam ser professoras de artes marciais. O herói de Ulster, Cuchulain, foi treinado pela amazona Scáthach que vivia na Terra das Sombras e ensinava aos heróis jovens que iam ver suas grandes proezas. Diz a lenda, que quando chegou, encontrou muitos filhos de príncipes da Irlanda que haviam ido até lá para aprender a arte da guerra. 

Outro caso que a mitologia nos brinda é o da rainha Medb – Medbh, ou Maeve – rainha de Connaught, que tinha como esposo o rei Aillil, porém era ela quem detinha a soberania (que além disso é sempre feminina, os nomes antigos da Irlanda: Fotla, Banba, Eriu correspondem as três deusas que são uma, com quem devem casar-se os três reis dos Tuatha dé Dannan, raça mítica da Irlanda, para poder reinar). O número de seus amantes é incalculável, posto que ela concede a “Amizade das Coxas” a todos os guerreiros que deseja, para obter seu serviço. Sua imagem é a da prostituta divina que dispõe da soberania para o seu capricho. 

Resulta de toda saga mítica céltica um profundo receio contra as mulheres, o medo está presente em muitas lendas. Nos casos dos relatos de viagens irlandesas em que os homens são tentados por maravilhosas mulheres a viajar ao País dos Vivos, e tão grande é o poder destas mulheres que a magia dos druidas não pode fazer nada contra esta atração (ver o relato da aventura de Conle, o Vermelho). Quando a “Dama do Lago”, a fada Viviane, atinge Merlin com seus conhecimentos mágicos, este é incapaz de salvar-se. 

As mulheres tinham o poder da Geis sobre os homens, o Geis é uma proibição mágica imposta geralmente a um herói ou um rei. A mulher pode impor o Geis, e esta obriga ele a entrar em um jogo e seus desejos sexuais. Em uma oportunidade, Uathach, filha de Scáthach, vai à cama de Cuchulain e ele a alija, então ela responde impondo-lhe um Geis para que ele permita sua permanência. Também é muito frequente que seja a mulher quem obrigue o homem a quebrar o Geis

Sobre as druidesas, muitos autores negam sua existência devido a não terem sido mencionadas por alguns historiadores da época de Julio César, se bem que há de ter em conta que Julio César nunca chegou as Ilhas, de onde parecem prosseguir os relatos acerca de mulheres sacerdotisas. Em viagem, Pomponius Mela tece um relato acerca delas, de quando acompanhou Adriano até as Ilhas Britânicas “… havia na alta Caledônia mulheres sacerdotisas chamadas Bandruidh que, por igual aos druidas varões, estão divididas em três categorias…” e segue com um relato detalhado sobre o lugar que ocupavam socialmente e as funções que exerciam. Estrabão de Pontus relata um sacrifício múltiplo executado por druidesas no norte da Irlanda. 

A respeito disto, é interessante levar em conta as Conhospitiae (VIII), mulheres administradoras da comunhão. Este feito, característica que diferenciava a Igreja Celta, imprimiu seu próprio selo em todas as ordens. No sínodo realizado em Whitby se decidiu que prevaleceria o estilo católico romano para a Igreja Celta e se modificou a data da Semana Santa. Porém a Igreja Escocesa manteve sua independência até o século XI. O emprego das Conhospitiae, condenado pelos católicos, continuou logo após o sínodo, ação que foi comprovada pelas denúncias que fizeram os bispos da província de Tours no século VI, em cartas escritas ao clero bretão (5). Dificilmente são incorridos nesta prática na ausência de um antecedente. Na “antiga vida de Brígida” se menciona que Santa Brígida foi consagrada como bispa “por equívoco”. Dado que desaparece nas bibliografias subsequentes. 

Foi uma característica própria dos celtas a de imprimir sua marca, tinham a capacidade de conviver com algo individual e próprio a cada modelo recebido das distintas culturas com as quais entraram em contato. 

É evidente que o tema apropriado para uma investigação mais profunda, somente se tentou através deste trabalho conceder uma visão geral daquelas mulheres tão diferentes das mulheres do modelo greco-romano e que ainda que pouco reconhecidas também deixaram sua herança. 



Por Viviana E. O´Connell. 


Referência Bibliográficas (da autora): 



Fontodrona, Mariano. “Los celtas y sus mitos” Barcelona, edit. Bruguera- 1978 

Green, Miranda Jane. “Mitos Celtas” Madrid, edic. Akal S.A. 1995 

Jubainville, H. D’Arbois de. “El ciclo mitológico Irlandés y la mitología céltica” España, Edicomunicación S.A. 1986 

Mac Manus, Seumas. “The Story of the Irish Race” New York, The Irish Publishing C.O. 1921 

Markale, Jean. “Pequeño diccionario de Mitología céltica” Barcelona, edit. Entente 1993 

Marx, Jean. “Las literaturas célticas” Argentina, EUDEBA 1964 

Rasaspini Reynolds, Roberto. “Los Celtas” magia, mitos, tradición. Argentina, edic. Continente 1998 

Rolleston, T. W. “Los Celtas” Mitos y leyendas. España, M. E. editores S.L. 1995 

Rutherford, Ward. “El misterio de los druidas” Barcelona, edit. Martínez Roca S.A. 1994 

Thomas Cahill “De cómo los irlandeses salvaron la civilización” Bogotá, editorial Norma S.A. , 1998 


Notas da Autora: 


(1) Nota da autora, especificamente referida às bibliotecas do meu país, Argentina. 

(2) Seumas mac Manus. “The Story of the Irish Race” New York, The Irish publishing C.O. 1921 

(3) Seumas Mac Manus. “The Story of the Irish Race” New York, The Irish publishing C.O. 1921 

(4) Seumas Mac manus. “The Story of the Irish Race” New York, The Irish publishing C.O. 1921 

(5) Ward Rutherford. “El misterio de los druidas” Ediciones Martínez Roca S.A. 1994 


Notas explicativas do tradutor: 


I. A Ilha de Mona citada por Tácito foi associada pelos romanos aos Druidas, que segundo o autor clássico a chamavam de Môn. Localiza-se atualmente no País de Gales, onde fica o Condado de Anglesey. 

II. Do Irlandês, Coibche: “porção matrimonial”, Tinnscra: “preço da noiva” , Tochra: “dote”. 

III. Os Sequanos eram um povo da Gália, vizinhos dos Helvécios e seus domínios territoriais se estendiam pela bacia do Alto Arar, vale do Doubs e a Cordilheira do Jura (atual França e Bélgica). 

IV. Os Brigantes eram um povo celta que dominou sobre a região central britânica da Idade do Ferro até a conquista romana. 

V. Os Icenos eram um povo britânico e seu território estava localizado onde atualmente é o condado de Norfolk, Inglaterra. 

VI. Carro de duas rodas puxado por quatro cavalos, muito utilizado no período em campo de batalha. 

VII. Adomnán de Iona foi um abade irlandês viveu e morreu no fim do século V na ilha de Iona, exerceu grande influência na região e promulgou a “Lei dos Inocentes”. 

VIII. As Conhospitiaeeram mulheres que tiveram um papel importante na evangelização do mundo celta. Isso demonstra uma continuidade da função religiosa e espiritual da mulher celta.





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